O que é uma cidade inteligente?

Essa é uma das perguntas que mais me fazem, então resolvi vir aqui para esclarecer quais são os princípios fundamentais que você precisa aplicar no seu município para que ele se torne uma cidade inteligente. Para isso, vou dividir o tema em 5 partes:

  • O que é uma cidade inteligente?
  • O que não é uma cidade inteligente?
  • Quatro pontos estratégicos para se ter cidades inteligentes (o ponto 4 é fundamental nesse processo)
  • Desafios e atalhos
  • Vamos lá.

O que é uma cidade inteligente?

Cidade inteligente é um conceito que vem sendo discutindo há mais de dez anos dentro da literatura e, portanto, existem diversas definições diferentes. Para que você tenha uma ideia mais clara do que é uma cidade inteligente, vou apresentar aqui alguns conceitos de autores distintos.

1. O conceito de sistemas complexos:

Quando falamos em cidades inteligentes, estamos considerando a cidade como um organismo vivo, um sistema complexo cujas partes estão interconectadas. Isso significa que, para entender como uma parte de uma cidade funciona, precisamos olhar para o todo e não apenas para uma parte isolada. Quem deu e Frijot Capra disse:

"Os sistemas não podem ser entendidos pela análise. As propriedades das partes não são propriedades intrínsecas, mas só podem ser entendidas no contexto do todo mais amplo."

Ou seja: ao pensarmos em cidades inteligentes, precisamos considerar o todo e não apenas as partes individuais.

Cada secretaria em uma cidade é uma parte do sistema complexo (saúde, mobilidade, fazenda, etc.). Para compreender como essas partes funcionam e como se relacionam entre si, precisamos entender como elas afetam o todo e como o todo influencia cada uma delas.

2. Agora, vamos ver como Giffinger, um autor muito conhecido, define o que é uma cidade inteligente:

"Uma cidade com bom desempenho de maneira prospectiva em economia, pessoas, governança, mobilidade, ambiente e vida, construída com base na combinação inteligente de doações e atividades de cidadãos pro-ativos, independente e conscientes."

A palavra prospectiva se refere ao fato de que uma cidade inteligente deve ter uma visão de longo prazo e procurar prever como a sociedade vai evoluir.

O que devemos levar em conta aqui é que, além da interconexão das partes da cidade, os cidadãos também têm um papel a desempenhar na criação de uma cidade inteligente. Eles precisam ser conscientes de seus comportamentos e de como podem contribuir para a cidade como um todo. Em uma cidade inteligente, a população também é inteligente e consciente de seu papel.

Uma cidade inteligente é aquela que tem um olhar de longo prazo e uma população envolvida, consciente de sua responsabilidade e comprometida com a melhoria da qualidade de vida de seu município.

3. Entendido essa definição, vamos analisar outro que foi apresentado em um artigo de 2010.

"É uma cidade que conecta a infraestrutura física, a infraestrutura de TI, a infraestrutura social e a infraestrutura de negócios para alavancar a inteligência coletiva da cidade"

Observe que Harrison também destaca a interconexão das partes.

Essa integração alavanca a inteligência coletiva da cidade, que é quando os habitantes trabalham em conjunto em busca de um objetivo em comum e utilizam as infraestruturas disponíveis de maneira eficiente para alcança-lo mais rapidamente.

Uma cidade inteligente é uma cidade capaz de integrar todas as suas partes e trabalhar de maneira colaborativa em busca de um objetivo comum.

4. Vamos para mais uma definição, dessa vez de Washburn, que definiu uma cidade inteligente como sendo:

"O uso de tecnologias de computação inteligente para tornar os componentes e serviços críticos de infraestrutura de uma cidade - que incluem administração, educação, saúde, segurança pública, imóveis, transporte e serviços públicos - mais inteligentes, interconectados e eficientes"

Percebe que todas as definições, embora diferentes, possuem muito aspectos em comum?

O conceito de cidade inteligente está sempre relacionado com a melhoria da qualidade dos serviços que são prestados. É sempre o uso da tecnologia como um meio, não a tecnologia pela tecnologia. É uso dela para aperfeiçoar os serviços críticos que afetam a vida dos cidadãos, com o objetivo de torná-los mais eficientes.

Uma cidade inteligente utiliza a tecnologia para tornar os serviços que impactam a vida dos cidadãos mais eficientes.

Já Toppeta define uma cidade inteligente como:

"Uma cidade que combina a tecnologia, inovação e comunicação (TIC) e a web 2.0 com outros esforços organizacionais, de design e planejamento para desmaterializar e acelerar processos burocráticos, ajudando a identificar e implementar soluções inovadoras para o gerenciamento da complexidade das cidades, afim de melhorar a sustentabilidade e a habitabilidade."

Pode ser que você esteja se perguntando por que motivo uma cidade inteligente deve se preocupar com o design. A resposta é que, além de precisar ser funcional, uma cidade inteligente também deve ser bonita e agradável.

Mas, além de funcionar e ser bonita, ela também precisa de planejamento, porque ele é essencial para estabelecer e alcançar objetivos a longo prazo. O uso de tecnologia, inovação e otimização dos processos tem como finalidade desburocratizar e melhorar a sustentabilidade e a habitabilidade* da cidade.

*Habitabilidade refere-se ao grau de satisfação dos habitantes da cidade, ou seja, como é agradável morar lá e qual é a qualidade de vida oferecida para os cidadãos.

Uma cidade inteligente é uma cidade integrada, bonita, agradável, sustentável e desburocratizada.

Agora que vimos todos essas definições, vou falar sobre o conceito que eu venho trabalhando no Brasil. Uma cidade inteligente é construída em cima de 4 pilares:

Cidade humana

Cidade eficiente

Cidade sustentável

Cidade inteligente

Humana: com foco constante na melhoria da qualidade de vida do cidadão. Isso é: melhorar processos e desburocratizá-los com o objetivo de acelerar o acesso e melhorar a qualidade dos serviços.

Eficiente: que usa da tecnologia para melhorar processos e serviços, economizando tempo e recursos – recursos não só financeiros, mas materiais (fazendo isso através de reciclagem, reutilização, por exemplo), de tempo (economizando tempo da gestão pública e do servidor, evitando retrabalho)

Sustentável: que tem suas políticas públicas e projetos orientados pelo equilíbrio do tripé da sustentabilidade: economia, meio ambiente e sociedade.
Todas as políticas públicas e projetos precisam visar este equilíbrio: gerar qualidade de vida, ao mesmo tempo em que preserva o meio ambiente – pensando não só na geração de hoje, como também na geração futura.

Inteligente: gestores, empresários, universidades e cidadãos unidos em um mesmo propósito, que é o de construir uma cidade melhor para todos.

Quando eu falo sobre cidades inteligentes, é disso que estou falando.

O que NÃO é uma cidade inteligente

Agora que a gente viu o que é, fica fácil entender o que não é uma cidade inteligente.

Vamos falar sobre 3 características de uma cidade NADA inteligente, mas já adianto: não tem relação alguma com o tamanho da cidade ou se tem muito ou poucos recursos. Tem muito mais a ver com a forma com que essa cidade é organizada e administrada e a falta de clareza dos gestores e da população sobre onde estão e onde querem chegar.

01. Ausência de Planejamento: falta de clareza de qual é a cidade que temos e a cidade que queremos.

Sem saber qual é o seu ponto de partida e qual é o seu ponto de chegada, todo passo dado é perda de tempo, dinheiro e energia com coisas que não levarão a lugar algum.

Um planejamento é como um GPS: você primeiro precisa definir um objetivo final e, a partir disso, definir qual é a melhor rota que vai fazer você sair de onde está e chegar onde quer – a rota é o planejamento. Sem esse instrumento, que deve ser construído coletivamente, envolvendo todas as lideranças na definição da cidade que se quer alcançar e qual é a cidade que se tem hoje, a cidade fica sem continuidade de projetos.

Sai um prefeito e entra outro e é como se tudo começasse do zero. Zeram-se os projetos e gasta-se muito dinheiro e tempo para iniciar um projeto completamente novo, com um objetivo completamente diferente, ignorando tudo que havia sido feito até então, todo dinheiro e esforço que haviam sido colocados nos projetos que estavam sendo executados.

Isso é ineficiência.

02. Falha na comunicação: baixo engajamento e ausência de parcerias.

Por que isso acontece? Por falta de clareza – afinal de contas, como é que se comunica algo que não se sabe o que é?

Não adianta convocar a população para a audiência pública se a ela não está entendendo o que você está falando, se não está claro para o cidadão qual é o papel dele ali, se a opinião dele realmente vai ser considerada naquele projeto.

Esse é, inclusive, mais um dos motivos pelo qual é necessário ter clareza de qual é o projeto de cidade que se quer alcançar, porque é somente com essa clareza que a contribuição da população será, de fato, considerada – porque ela vai saber qual é a cidade desejada e irá contribuir de acordo com ela.

Entende por que o projeto tem que ser alinhado com o desejo da população e também com o setor que desenvolve a economia do município? Porque se não um agente acaba boicotando o processo.

E a falha de comunicação não é só com a população, acontece também dentro da própria prefeitura. O prefeito tem uma visão, o secretário não compreende muito bem e aí, quando chega no servidor público, a visão está distorcida. E quanto mais falha na comunicação, mais ausência de parceria se dá – porque o parceiro, assim como o cidadão, só vai querer entrar no projeto se entender o que é e se é interessante para ele investir naquilo. E, sem parceiros, não há recursos.

É isso resulta no que vemos hoje: milhares de cidades paralisadas, dependendo apenas dos repasses da união.

03. Ineficiência na gestão financeira:

O valor que vem proveniente da arrecadação para o município, é um valor que chega com seu uso restringido pela lei. A distribuição dele deve ser feita da seguinte forma:

Veja que não tem valor destinado para investir na segurança, mobilidade, meio-ambiente… É por isso que a gente vê os gestores reclamando da falta de dinheiro – o município até tem dinheiro, mas ele está todo amarrado.

Além desse problema, nós temos o problema da ineficiência da gestão que, como já falamos, acontece por falta de clareza. Vou explicar:

Essa quebra de projetos e falta de continuidade na gestão pública é responsável por um grande gasto de recurso financeiro – nos últimos 10 anos foram quase 90 bilhões de reais jogados fora com grandes obras públicas que foram paralisadas. Isso não pode acontecer: se uma obra importante foi iniciada, ela precisa ser finalizada. Do contrário, todo dinheiro investido nela terá sido desperdiçado.

Ok, você já sabe o que é e o que não é uma smart city, mas o que é preciso para ter uma cidade inteligente? Não daria para eu resumir aqui nesse post, mas para começar vamos falar sobre 4 obrigatórios.

4 pontos estratégicos para se ter cidades inteligentes

01. Planejamento

O município tem em média 40 instrumentos de planejamento que são obrigatórios, são 40 planos municipais que ele precisa fazer para organizar todo o processo da gestão pública (plano de mobilidade, saúde, educação, saneamento, etc.). Todos esses instrumentos devem estar alinhados com um único objetivo, aqui vou falar dos 4 principais que vão basear todos os outros:

  • Plano diretor:
    É a lei no município que estabelece a cidade que temos e qual queremos no prazo de 10 anos. Com base nisso, também define todos os objetivos, diretrizes, metas e tudo que quer ser alcançado dentro desse intervalo.
  • PPA: Plano PluriAnual
    É o plano de governo do prefeito, para os 4 anos, que precisa estar de acordo com o plano diretor.
  • LOA: Lei Orçamentária Anual
    Define quais projetos estabelecidos no PPA vão ser executados naquele ano.
  • LDO: Lei de Diretrizes Orçamentárias
    Define as diretrizes para o ano seguinte, baseada no PPA.

02. Regras

Para que todo esse planejamento aconteça, é necessário regras bem definidas – e, quando falamos de regras em cidades, falamos de normativas municipais.

Todas as normas precisam ter os seus princípios e valores.

Para definir qual será a cidade que queremos, é preciso definir os valores que guiarão o município. Isso permitirá que os instrumentos legais sejam ajustados para atingir esses objetivos e valores.

Para que qualquer projeto seja realizado no município, é necessária uma lei que autorize a sua implementação. A Câmara Municipal é responsável por aprovar essas leis, que são fundamentais para a execução de projetos e é por isso que ela é tão importante.

Por exemplo: se não existe uma lei falando que precisa ser feito o plano de saneamento naquela cidade, o plano de saneamento não poderá ser feito – e nem aplicado no PPA, LOA e LDO.

Conseguem entender a importância do plano diretor? Ele é o plano abrangente que fala o que tem que ter, para que depois se entre com os planos mais detalhados.

03. Recursos

Recursos alocados de forma estratégica, priorizando projetos que oferecem sustentabilidade financeira ao longo do tempo. Isso inclui não só recursos financeiros, mas também recursos humanos, tempo, materiais e qualquer outro recurso necessário para a realização dos projetos.

Por exemplo: muitos municípios que não tem recursos financeiros, alocam seu dinheiro em projetos sem sustentabilidade financeira. É preciso ser estratégico nesse momento: se o município está passando por dificuldades, o correto é investir primeiro em um projeto que vai se pagar para que depois você possa investir em projetos que precisam ser executados, mas não trarão retornos financeiros.

Ao planejar projetos para o município, é importante priorizar aqueles que têm viabilidade econômica e sustentabilidade financeira. Dessa forma, é possível garantir que haja recursos disponíveis para investir em outras iniciativas futuramente.

04. parceria

Nenhum agente, seja o setor público, privado, universidade ou sociedade, é capaz de transformar uma cidade em inteligente sozinho. É preciso que todos trabalhem juntos, pois cada um deles tem um papel fundamental na construção de uma cidade inteligente

Desafios e atalhos

Para tornar uma cidade inteligente, é necessário ter um bom planejamento, normas bem definidas, alocação estratégica de recursos e parcerias sólidas.

Estes são os desafios que uma cidade deve enfrentar ao tentar se tornar inteligente. No entanto, se esses desafios forem superados, eles se tornarão atalhos para o desenvolvimento da cidade.

Por exemplo, um bom planejamento ajuda a definir objetivos claros e fornece uma rota para alcançá-los. As normas bem definidas garantem que todas as ações estejam alinhadas com os valores da cidade e os recursos alocados de forma estratégica permitem investir em projetos que oferecem sustentabilidade financeira a longo prazo. As parcerias sólidas entre os diferentes agentes da inovação (setor público, privado, universidade e sociedade) também são fundamentais para o sucesso da cidade.

Vamos nos aprofundar um pouco mais no planejamento:

Nem todo mundo consegue ver a importância do planejamento, de que o plano diretor é o principal plano da cidade. Na verdade, 80% dos municípios não alinham o PPA com plano diretor – muitas vezes o plano foi feita apenas porque é obrigatório.

É um desafio fazer os agentes entenderem a importância do plano diretor. Mas aqueles que entendem e fazem o plano diretor, a PPA, a LOA e a LDO alinhados em um único objetivo verão suas cidades evoluírem muito mais rápido.

O foco aqui é orquestrar e organizar esses quatro instrumentos, porque com eles alinhados, todos os outros instrumentos se alinharão também, porque se você decidir, por exemplo, que somente projetos alinhados com o plano diretor serão executados, todos os outros vão ser forçados a se alinharem com ele pra irem pra frente.

No entanto, isso só vai acontecer se a governança do Executivo realizar esse alinhamento.

“OK, Grazi, entendi. Mas e se o prefeito não quiser fazer esse alinhamento?”

Nesse caso, a câmara municipal não pode aprovar a LOA e a LDO, porque as duas leis só podem ser aprovadas no município se estiverem de acordo com o PPA – que, por sua vez, deve estar de acordo com o plano diretor.

É assim que a câmera apoia a construção de cidades inteligentes: fiscalizando o executivo no cumprimento dos objetivos e regras definidas no plano diretor.

Inclusive, o TCE exige essa integração entre PPA, LDO e LOA. Isso está na lei de responsabilidade fiscal, na constituição, no código tributário e é obrigação desde 1988.

“Grazi, meu município é pequeno e não tem plano diretor, como que eu faço?”

Faça proposta do plano diretor, porque, como vimos, não é possível que uma cidade se torne inteligente sem ele. Além disso, sem o plano você não consegue recursos, já que esse instrumento de planejamento é exigido por muitas fontes (ninguém vai dar dinheiro sem saber para qual finalidade aquele dinheiro será utilizado).

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